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Memórias em Cena // o repouso dos objetos antes de seguir viagem

  • Foto do escritor: Lucas de Vasconcellos
    Lucas de Vasconcellos
  • 7 de set. de 2024
  • 2 min de leitura

No vai e vem das vielas, dos bares, dos restaurantes, dos depósitos e dos poucos antiquários que desaguam entre a Rua Itapecerica e as encruzas do Buraco Quente, há sempre algo em estado de repouso antes de seguir viagem: uma cadeira encostada em uma porta, um quadro esquecido em uma loja fechada, uma manta de objetos estrategicamente dispostos sobre o chão — prontos para o recolhimento ao menor sinal da ameaça à existência marginal da Esquina dos Aflitos. Sempre às margens do ribeirão Arrudas, hoje suspensa sobre ele pela passarela que conecta a Praça da Rodoviária à Lagoinha, essa dinâmica resiste como um ciclo contínuo de encontros, trocas e desaparecimentos.


O ribeirão, aqui entendido poeticamente como um leito de rio — embora oculto sob o asfalto e os viadutos — ainda reverbera. Ele se faz presente nas feiras de escambo que surgem e desaparecem, nas histórias dos objetos que atracam no cais invisível deste território antes de ganhar um novo dono. Assim como o Arrudas, em suas cheias, já arrastou cadeiras, fotografias e cacos de memórias, a Lagoinha carrega, até hoje, um fluxo incessante de pessoas, culturas e objetos que se acumulam e se dispersam nesse tempo espiralar de encontros. O bairro nunca está estático.


O nome do Ribeirão Arrudas remonta ao período colonial, associado à antiga Fazenda dos Arrudas, de propriedade de Francisco Arrudas de Sá, localizada nas proximidades da atual região de General Carneiro, no município de Sabará. Contudo, muito antes da nomeação por referências coloniais, o ribeirão e seus afluentes já desempenhavam papel vital na dinâmica territorial dos povos indígenas que habitavam a região. Suas águas estruturaram redes de ocupação, circulação, abastecimento e sobrevivência, articulando a paisagem muito antes da formação do Arraial do Curral Del Rei e, posteriormente, de Belo Horizonte. O Ribeirão Arrudas não é apenas uma linha d’água na geografia urbana — é também um marcador ancestral de travessias, encontros e permanências.

Nesse fluxo, emerge também outras camadas menos contadas dessa história. Dos arquivos saturados de memórias das famílias italianas e portuguesas, pouco se fala das narrativas de uma classe operária que, por muito tempo, ficou à margem. Mas foram essas mãos — negras, nordestinas, migrantes — que ergueram um verdadeiro quilombo urbano em meio às frestas da cidade. A Lagoinha também tem sua pedreira para chamar de sua: a Pedreira Prado Lopes, o machado de Xangô que talhou as calçadas da Avenida Afonso Pena e de tantas outras ruas centrais desta ilustre capital dos ideais republicanos. Ideais que, não raro, sob a fuligem da própria história, esqueceram das mãos que, de fato, a construíram.



Próximo à atual região da rodoviária — onde outrora existiu a Praça Vaz de Melo —, a Esquina dos Aflitos permanece como parte viva desse fluxo. Conta-se que, após as enchentes, moradores ribeirinhos desciam até a beira do rio para recolher os objetos trazidos pelas águas — uma troca silenciosa entre a cidade e o Arrudas. Fragmentos de outras casas, de outras vidas, encontravam um novo caminho nas ruas do baixo centro e da Lagoinha, especialmente na Rua Itapecerica, quando ainda não havia a ruptura do asfalto e dos viadutos. Antes, este era um espaço contínuo, sem as cicatrizes urbanas que, hoje, impõem a separação entre a Lagoinha e a cidade.



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